Coeducação de Gerações

Conhecimento, escola e comunidade:: experiências no âmbito do programa novos talentos


 

Introdução

 

     Este texto é resultado de uma pesquisa desenvolvida no bojo do Projeto O envelhecimento humano no currículo da educação básica das escolas públicas do apoiado pelo Edital CAPES/DEB nº 033/2010 – Novos Talentos. Trata-se de uma análise sobre o intercâmbio e o compartilhamento de experiências entre alunas da Universidade da Terceira Idade/Universidade Federal Fluminense (UNITI/UFF) e da Rede Pública de ensino da cidade de Campos dos Goytacazes-RJ, a partir de encontros, debates e entrevistas, tendo por base a seguinte questão: frente às expectativas e sentimentos que dizem respeito à entrada em uma nova fase da vida – a velhice e a vida adulta –, como se dá a estruturação de clichês entre unidades geracionais diferenciadas quando colocados em pauta temas como modelos familiares, juventude e envelhecimento?

     O aspecto investigativo teve como finalidade produzir informações acerca do papel interdiscurso nas narrativas de adolescentes (de 15 a 17 anos) e adultas (de 55 a 60 anos) diante da aproximação da maioridade civil para as primeiras e da terceira idade para as demais. Nesses termos, de posse dos registros produzidos em tais encontros e a partir das teorias que versam a respeito de gerações e famílias – com base na metodologia da Análise do Discurso francesa –, investigou-se a circulação de saberes, percepções e experiências de vida entre gerações distintas. Ao final, foi possível perceber que a concepção de mundo das envolvidas desenvolve-se a partir de uma tensão entre o “olhar original” que lançam ao entorno, ou seja, a ressignificação de enunciados que pertencem a múltiplas formações discursivas das gerações que a precederam (pais, avós, bisavós) e a reprodução dos clichês interdiscursivos, que garantem a segurança ontológica de suas unidades familiares. Essas análises também serviram de suporte para as estratégias pedagógicas nos estágios das licenciaturas e de elaboração de material didático para as práticas educativas envolvendo a temática das gerações.

 

O contexto

 

     Como acontece com o dizer que nos remete a outros dizeres, também os lugares nos remetem a outros lugares. Desse modo, a cidade de Campos dos Goytacazes, situada ao norte do estado do Rio de Janeiro, com 477 mil habitantes, não se diferencia de outras cidades de porte médio no país, vivenciando um sensível envelhecimento de sua população – 11,5% do contingente possui mais de 60 anos de

     Da população absoluta, os adultos entre 55 e 59 anos de idade constituem hoje cerca de 21.774 pessoas. Dentre eles, 11.895 são mulheres. Em um espaço de cinco anos, pelos parâmetros oficiais, elas ingressarão na terceira idade. Em sua maioria, são egressas de uma sociedade de configuração rural, em que o poder político encontrava-se nas mãos das oligarquias agrárias locais. Trata-se de um mundo tradicional, centrado na hegemonia do pátrio poder, acentuadas desigualdades de gênero, na assimetria entre o grupo etário e o baixo acesso à educação formal.

     As alunas adultas que participaram da dinâmica da “Coeducação entre gerações” vivenciaram sua infância e adolescência entre os anos de 1955 e 1980, ou seja, ainda no período de domínio da economia açucareira e dos modelos de sociabilidade que a ela estavam ligados.

     Por sua vez, os constituem uma parcela significativa da cidade. Eles representam 118.953 habitantes, aproximadamente 25% do contingente da população total. Desse total, 19.825 são mulheres entre 15 e 19 anos, as quais, em um curto espaço de tempo, ingressarão na maioridade civil. As alunas jovens que participaram desta pesquisa têm entre 15 e 17 anos, nascidas entre os anos de 1993 e 1997. São educadas em uma configuração social diferente daquela vivenciada pelas colegas adultas, ou seja, nasceram na “Era dos e convivem com uma variedade de configurações familiares norteadas pela base legal da ideia de poder de família. Dessa forma, fica patente que o contato original de cada um dos grupos participantes com as suas respectivas etapas do curso de vida se dá em contextos sociais e históricos sensivelmente diferenciados.

     Diante do quadro apresentado, o projeto de extensão Coeducação de Gerações objetivou capturar e compreender as representações e práticas sociais desses dois grupos com trajetórias, vivências divergentes e convergentes, analisando o intercâmbio e o compartilhamento de experiências entre alunos da Universidade da Terceira Idade/Universidade Federal Fluminense (UNITI/UFF) e da Rede Pública de Ensino de Campos dos Goytacazes, a partir de encontros, debates e entrevistas, que tiveram de apoio a seguinte questão: frente às expectativas e sentimentos que dizem respeito à entrada em uma nova fase do curso de vida – a velhice e a vida adulta –, como se dá a estruturação de clichês entre unidades geracionais diferenciadas, quando colocados em pauta temas como modelos familiares, juventude e envelhecimento?

     Neste texto, com base na experiência desse grupo específico, buscamos apontar algumas permanências e mudanças de visões de mundo, bem como valores e práticas, de uma geração para outra. Para atender a tal propósito, diante do espaço que nos cabe, fizemos algumas considerações sobre a perspectiva sociológica do conceito de geração, a opção por determinada definição do conceito de família, a problematização das configurações familiares da atualidade, além da apresentação e análise do corpus discursivo em questão. Como se verá ao final deste artigo, destacamos a importância do interdiscurso entre as gerações, tendo em vista que, de um modo ou de outro, no discurso da geração mais nova há sempre a presença da visão de mundo da mais velha, valendo também o contrário.

     Por fim, as reflexões/saberes decorrentes do projeto que deu origem a este artigo, além de dialogarem com experiências que têm sido realizadas em outras partes do país, servem de base para a discussão a respeito da inclusão do tema do envelhecimento na Educação Básica, tendo em vista que o Estatuto do Idoso, no Capítulo V, Art. 22, e a Resolução nº 2, de 30 de janeiro de 2012, do Ministério da Educação, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2012), propõe que nos currículos dos diversos níveis de ensino formal sejam ministrados conteúdos relativos ao processo de envelhecimento e à valorização do idoso, de forma que se possa combater o preconceito e promover a dignidade humana.

 

Apropriando-se do conceito de gerações

 

     O desenvolvimento biológico do ser humano é um dado inelutável de sua condição: nascer, crescer, envelhecer e morrer. Os significados que damos a cada uma dessas fases do curso de vida é um rico indicativo de como a complexidade cultural opera em conjunto com a natureza. Algumas das categorias que usamos para estabelecer as distinções entre as pessoas são invenções relativamente recentes, como no exemplo dos marcos cronológicos, que definem as fronteiras da infância, da adolescência e da terceira idade. A ideia de idade, portanto, é um dispositivo arbitrário, com funções definidas e objeto de disputas sociais. Na constituição dos Estados Nacionais Modernos, a estratificação etária foi um importante dispositivo para contagem, controle e previsão das populações.

     Em seu clássico apontamento acerca das gerações, Mannheim (1993) defende a ideia de que, ao pensá-las, devemos levar em consideração vários pressupostos, tais como: a) o processo cultural depende de um fluxo contínuo de entrada de novos participantes na vida social, o que possibilita um contato original com a realidade existente; b) se uns entram (crianças e jovens), outros saem, ou seja, a dinâmica do processo histórico se constrói com a interpretação da memória social; c) qualquer membro de uma geração só participa de uma etapa específica do processo histórico, no que diz respeito ao seu contato original com as etapas percorridas do curso de vida; d) as sociedades humanas, para continuarem a existir, precisam constantemente transmitir a sua herança cultural.

     A partir da concepção geracional apresentada, é possível avaliar que uma educação ou instrução adequada aos jovens (no sentido da transmissão completa de todos os estímulos subjacentes ao conhecimento pragmático) encontraria uma dificuldade formidável, já que seus problemas experienciais são definidos por um conjunto de adversários um tanto diferente do de seus professores. O relacionamento professor-aluno, desse modo, não é entre dois representantes da “consciência em geral”, mas entre um possível centro subjetivo de orientação vital e outro subsequente. Trata-se de uma tensão impossível de ser solucionada, exceto por um fator de compensação: não apenas o professor educa seu aluno, mas o aluno também educa o professor. As gerações estão em um estado de interação constante (MANNHEIM, 1993).

     Conforme Domingues (2004), é considerado pertinente prestar atenção a três conjuntos de variáveis que concorrem para a operacionalização do conceito de geração, quais sejam: a) o pertencimento a um grupo familiar e relações de parentesco em uma perspectiva de sucessão; b) os coortes etários com a sua tripla dimensão – idade biológica, cronológica e os estágios de maturação; c) por fim, a experiência de vida e a reflexividade decorrente de tal processo. Cabe ressaltar: embora a ideia de coorte nos pareça enriquecedora, estamos mais próximos, ou melhor, operamos com os conceitos durkheimianos de posição, conexão e unidade geracionais (WELLER, 2010).

     De forma geral, na subdivisão proposta por Mannheim (1993), a posição geracional pode ser entendida como a possibilidade de um grupo de indivíduos adquirir ou não certo estoque de experiências. Por sua vez, a conexão geracional diz respeito à vinculação concreta em relação ao destino comum da comunidade, de forma que o indivíduo/grupo extrapole a simples condição potencial. Por fim, a unidade de geração remete à ideia de se assumir uma posição/reação política similar, uma vibração homogênea, uma postura comum diante de fatos e processos da realidade vivenciada, que não se confunde com o grupo concreto em si, mesmo que, como sugere Mannheim (1993), possa ter existido no passado ou ainda existir no presente.

     As participantes do projeto, portanto, podem ser consideradas uma unidade geracional, tendo em vista que, para além da situação etária, compartilham experiências, valores, gostos e filiações a credos muito similares.

 

A segurança ontológica no coração das famílias

 

     No processo de socialização primária, a família constitui-se em um dos campos privilegiados da coeducação, ainda que, definitivamente, em sua referência histórico-social, as gerações não se resumam àquele espaço. Sabemos que a família, como fruto de uma teia de relações resultante de um processo histórico-social e biográfico específico, comporta grupos geracionais diferenciados. Estes, comumente, estão envolvidos em situação de conflito, negociação e/ou cooperação, seja por questões referentes à alocação de recursos básicos, à transmissão de valores, às exigências emocionais e até mesmo ao que concerne às expectativas de reciprocidades. De qualquer modo, nossas primeiras experiências emocionais e de acesso ao universo da linguagem se dão no quadro das configurações familiares.

     Em suas considerações sobre as mudanças que afetam as famílias no mundo globalizado, Giddens (2002) afirma que a intimidade tem sido conduzida no sentido de uma democracia emocional. Esta, em seus atributos, corresponde aos ideais de uma política democrática, no qual a negociação, que nasce do diálogo e da igualdade, é fundamental. O bom relacionamento, assim, é aquele estabelecido entre sujeitos portadores de direitos e reconhecidos como tais, ou seja, onde as expectativas de reciprocidade são minimamente atendidas. Nesses termos, essa instituição, em seu papel no processo da socialização primária, seria a responsável inicial pela construção da segurança ontológica do indivíduo:

 

As origens da segurança que a maioria sente, a maior parte do tempo, em relação a estas possíveis auto-interrogações, devem ser encontradas em certas experiências características da primeira infância. Indivíduos ‘normais’, quero argumentar, recebem uma ‘dose’ básica de confiança na primeira infância que elimina ou neutraliza estas suscetibilidades existenciais. Ou, para alterar levemente a metáfora, eles recebem uma inoculação emocional, inoculação que protege contra as ansiedades ontológicas às quais todos os seres humanos estão potencialmente sujeitos. O agente desta inoculação é a figura protetora primária da infância: para a maioria dos indivíduos, a mãe (GIDDENS, 1991, p. 85-86).

 

A constituição do corpus discursivo

 

     A construção do corpus discursivo deste trabalho se deu por meio de entrevistas de história de vida temática e dos registros dos debates que foram realizados com a participação dos dois grupos de unidades geracionais diferenciados. A estratégia empregada para a construção e a problematização do dizer nesse processo foi a Análise do Discurso francesa (ORLANDI, 2002; MAINGUENEAU, 2005; CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008). Estivemos atentos a várias questões concernentes à produção de sentido da narrativa sobre si e sobre a vida dos outros. Dessa perspectiva, procuramos fazer emergir o não dito, o implícito e o peso do interdiscurso no espaço de enunciação da comunidade discursiva abordada, além de revelar alguns aspectos de sua formação ideológica. Não se trata, contudo, de um esquema pronto para ser aplicado aos dados coletados. Nessa escolha, a teoria e a metodologia são consideradas dimensões inseparáveis da investigação, ou seja, um intercâmbio, no qual o estudioso pode construir o dispositivo de suas análises.

 

Esse dispositivo tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras (ORLANDI, 2002, p. 59).

 

     Ao adotarmos esse dispositivo de interpretação, procuramos não perder de vista que se trata de uma ambivalência: por um lado, tivemos que descrever as produções de sentidos dos sujeitos pesquisados; por outro, tentamos ter claro que a descrição realizada passava pelo crivo de nossa própria produção de sentido. Disso decorre a necessidade do constante monitoramento sobre o nosso trabalho, para não cairmos na ilusão de que se tratava de investigar “a verdade”. Nessa lógica, entendemos que a cena de enunciação deste trabalho, ou seja, a situação de comunicação vivenciada para a construção do corpus discursivo, ajudou a instaurar o espaço e o gênero do discurso aqui construído.

     Iniciamos o processo de elaboração do discursivo com a apresentação do projeto para as participantes. Nesse momento, pedimos a todas que autorizassem o uso dos registros produzidos em nossos encontros, estes divididos em dois grandes momentos. O primeiro foi o das entrevistas temáticas de história de vida. Essas narrativas foram feitas individualmente e centraram-se em temas como família, juventude e velhice. Procuramos rastrear, dessa forma, as concepções que as entrevistadas trazem consigo dos modelos familiares, sejam os de origem, o constituído, o vivenciado e/ou o idealizado. Nesses termos, destacamos a definição e a importância que elas atribuem à ideia de transferência de apoio, de autoridade e afeto no processo educacional entre gerações, as suas concepções de juventude e de velhice. O segundo momento foi quando as gerações trabalharam em conjunto nos debates que organizamos na escola, tendo como mote os mesmos temas discutidos anteriormente.

     As entrevistas e debates foram realizados ao longo dos meses de junho e julho de 2011 e 2012, com um grupo de 22 pessoas (11 mulheres jovens e 11 adultas), formado por estudantes de escola pública e da Universidade da Terceira Idade/Universidade Federal Fluminense. Nosso principal interesse consistiu em obter um indicativo das representações das envolvidas acerca dos temas em pauta, de como elas constituem e vivenciam os seus saberes no âmbito familiar. O diálogo funcionou como uma estratégia que concorreu para a integração dos agentes. A abertura para convivência se fez com o reconhecimento de diferenças, a começar pela linguagem e pelo repertório. Passado o primeiro estranhamento, acreditamos que a memória social serviu de suporte para promover a interface entre as experiências vivenciadas pelas idosas na adolescência e a das jovens na realidade presente. Nesses termos, as lembranças contribuíram para a construção de sentido sobre o vivido e como suporte para as expectativas nutridas acerca do futuro.

 

Olhares sobre as configurações familiares e as etapas do curso de vida

 

     Ao mapearmos os modelos de família das participantes, percebemos que, apesar de a conjuntura municipal ter se modificado ao longo das últimas décadas, a concentração populacional ter deixado de ser rural para se tornar urbana e das famílias se tornarem nucleares e menores, em ambos os grupos, majoritariamente de classe média, ainda se atribui importância à concepção de família ampliada, em que as diferentes gerações, funcionando como rede de apoio, convivem na mesma casa, quintal ou em ruas próximas. Dos preços dos imóveis às “garantias” esperadas quando se mora perto de um familiar, vários são os fatores que concorrem para a situação de “viverem juntos”.

     Independentemente do grupo de idade, de qualquer modo, um ponto recorrente nos discursos das entrevistadas é a definição de família diretamente ligada à rede de confiança construída ao longo do curso de vida dos seus membros. Contudo, essa visão disputa com enunciados recorrentes que, direta ou indiretamente, fazem alusão à consanguinidade para o estabelecimento das filiações na configuração familiar. Nesse sentido, a tensão entre “família é aquela com quem se pode contar” e/ou “família é quem é do sangue” percorre as falas em diferentes momentos das narrativas. Dependendo da situação retratada, uma ou outra definição é mobilizada como a mais adequada.

     Na problematização do papel do afeto e da autoridade nas relações entre gerações dentro das famílias, registramos experiências similares e distintas entre os grupos. Para as adultas, quando comparada com os padrões de autoridade que observam na atualidade, a relação com os seus pais e avós foi marcada por uma clara distinção entre quem mandava e quem obedecia. Nos depoimentos, de forma geral, houve acordo sobre a importância que o exercício do poder dos pais teve na boa formação educacional que acreditam ter e que, de certa forma, tentaram passar para os próprios filhos. Nesse caso, em função das relações de força e formações imaginárias, as declarações de admiração pela dedicação da mãe e pelo esforço do pai são a tônica de muitas delas. Não obstante, em diversas passagens, as entrevistadas deixavam transparecer certa insatisfação com a configuração do pátrio poder a que eram submetidas, mas que aprenderam a respeitar.

 

Eu, às vezes, ficava um pouquinho revoltada, que eu queria fazer as coisas, o que eu queria fazer e eles não deixavam fazer. Queria passear, queria ir a baile, queria ter mais liberdade pra namorar e tudo. Eles não deixavam. Aí, às vezes, eu ficava revoltada. É, bate uma revolta danada (Mulher, 59

 

     Na visão das jovens, muito embora a liberdade das meninas continue limitada por uma educação que faz distinção entre os gêneros, ao compararem suas experiências com os padrões de autoridade que seus pais vivenciaram no passado, a relação estabelecida em casa não é tão centrada assim na assimetria entre “quem manda e quem obedece”. Em algumas passagens, nas relações com os adultos, elas assumem o lugar de discurso que comumente seria ocupado por eles.

 

Sei lá, porque eu acho que ela não sabe criar o meu irmão direito, entendeu? eu fico brigando com isso, eu fico falando com ela: ‘mamãe, você tem que fazer isso’. Porque ela mima muito ele, faz tudo que ele quer, entendeu? eu fico aporrinhada com ela, entendeu? (Mulher, 17

 

     No tocante à transferência de apoio entre gerações, nos dois grupos existe o discurso afinado à ideia de amparo mútuo como algo fundamental para a estruturação e o desenvolvimento familiar. O ervilha-de-debulhar-redonda é considerado uma atitude que confirma o amor existente e serve de “estrutura” para que o indivíduo encare o mundo lá fora. Assim, a ideia de “sacrifício” encontra-se como o playground da aliança que se estabelece entre diferentes gerações. No caso, os mais velhos devem investir nos mais novos, para que mais tarde possam receber deles o seu apoio. Nos dois grupos, entretanto, paira certo receio de que a aliança possa vir a ser quebrada.

     Ao problematizarmos a inserção das adultas na rede marcada pelo notamos que maioria ainda contribui para o bem-estar dos filhos, mesmo daqueles já na fase considerada “madura” da vida, seja fornecendo ajuda financeira, cuidando dos netos, lavando roupa, cozinhando, vigiando a casa e/ou dando apoio moral. Ocorre que essa ajuda pressupõe uma espécie de reconhecimento da vontade, na forma de atenção, diálogo e apoio na doença, mas tal contrapartida nem sempre ocorre sem percalços, podendo esbarrar na falta de tempo dos filhos ou no fato destes estarem mais voltados para a realização de suas próprias vontades.

 

Aí, eu penso: ‘hoje eu vou fazer isso ‘assim’’. Aí, eles dizem: ‘Ah, não, faz não sei o que lá’. Aí, meu filho mais velho, o mais novo não é muito não, mas o mais velho é mestre em gostar de falar o que fazer pro almoço. Eu até gosto que eles falem, porque… pelo menos eu faço alguma coisa que eles estão querendo comer. Não é? Aí, ele sempre uma ‘coisa’, ‘assim’, a vontade deles, eu vou sempre na deles. E agora que eu estou com os dois netos também, é mais homem pra poder mandar na gente dentro de casa (Mulher A, 57

 

     Vejamos agora como se inserem as jovens no Foi constatado que a maioria se dedica aos estudos e a colaborar nas atividades domésticas, que vão de limpar a casa e fazer comida a ajudar nos cuidados com os membros dependentes da família. Em contrapartida, alegam receber de seus familiares somente as condições básicas para o desenvolvimento dos seus projetos pessoais e profissionais futuros. Embora as entrevistas conduzam na direção de uma convivência harmoniosa, em diversos momentos, na diversidade dos enunciados da formação discursiva em questão, foi possível perceber alguns atritos que acompanham as interações familiares.

     O grupo das adultas, quando questionado sobre as diferenças que percebem entre o jovem de hoje e o das décadas de 1960/80, tendeu a retratar o atual sob um crivo negativo, entendendo que é livre em excesso, violento, desrespeitoso e sem amor-próprio. São considerações que parecem dizer mais acerca de seus ressentimentos decorrentes de experiências familiares castradoras, das imposições da formação moral religiosa e das visões propagadas pela mídia sobre a juventude desviante do que por experiências concretas de convivência com grupos de adolescentes. O pouco contato que possuem com pessoas jovens é com os(as) próprios(as) filhos(as) e netos(as), que, neste caso, não possuem as características que apontaram para os jovens em geral. É um exemplo típico de formações imaginárias como sendo a base do discurso.

 

Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricos lugares dos sujeitos para as posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição. Em toda língua há regras de projeção que permite ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que significa nos discursos são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória (o saber discursivo, o já dito) (ORLANDI, 2002, p. 40).

 

     Na mesma lógica enunciativa, ao serem questionadas sobre as diferenças que percebem entre a juventude de hoje e a de seus pais, as jovens assumiram posição de mão dupla. Quando retrataram seus amigos, bem como no momento de se descreverem, as identidades discursivas foram carregadas de virtudes como coragem, autonomia, esforço e liberdade; já se tratando da juventude em geral, apareceram as seguintes referências: aborto, drogas, baderna, imaturidade, violência, irracionalidade, rebeldia, descontrole e falta de estudo. Notamos que tal perspectiva, via de regra, vem acompanhada de uma visão romântica do passado paterno – supostamente marcado pela inocência, obediência e recato dos mais jovens em relação aos mais velhos – que adquiriram por meio das narrativas que escutaram.

     No que diz respeito à velhice do passado em comparação com a atual, a maioria das adultas considera que, anteriormente, os velhos morriam cedo e não levavam uma vida tão ativa e diversificada quanto a que as pessoas de terceira idade levam hoje. Por outro lado, acreditam que os jovens da atualidade não têm respeito pelos idosos; já tendo passado pela juventude, o grupo adulto sabe que as pessoas nessa idade, em sua maioria, não acreditam ou não pensam que irão envelhecer. Quanto às jovens, a maioria convive com idosos e costuma, em alguns casos, ter uma relação de menor atrito com eles (principalmente os avós) do que com seus pais. Grande parte não tem a velhice como assunto recorrente em seu campo de preocupações; não obstante, de vez em quando, costuma pensar no tipo de idosa que pretende ser em um futuro distante.

     Notamos que, embora a reciprocidade seja um imperativo moral para os dois grupos, o fantasma da perda de autonomia funcional e instrumental por conta da idade avançada é uma ideia recorrente nos discursos, ou seja, ninguém quer ser dependente na velhice. Todas operam com a distinção entre ser velho e ser de terceira idade; traduzindo, os velhos são frágeis e dependentes, enquanto os de terceira idade, joviais e ativos. O medo da solidão nas idades mais avançadas da vida também esteve presente em todas as declarações, acrescido do apontamento de que a constituição de uma família é uma espécie de garantia contra esse medo. Contudo, conforme propõe Singly (2007), assistimos a uma crescente autonomização do indivíduo dentro das famílias contemporâneas, gerando tensão entre os interesses individuais e os de grupo, bem como sobreposição dos projetos pessoais sobre os coletivos. Em outras palavras, ninguém está completamente seguro, pois as garantias de reciprocidade das alianças podem ser quebradas.

 

Conclusão

 

     O senso comum costuma destacar as distintas visões de mundo entre as diferentes unidades geracionais. No trabalho de campo, contudo, as fronteiras não estão delimitadas tão bem assim. Sabemos que um dizer traz as marcas dizeres anteriores, ou seja, os discursos de uma geração podem carregar as marcas dos enunciados que foram caros às gerações de outrora; por outro lado, as gerações mais novas podem incorporar enunciados que estão diretamente relacionados ao olhar original da atualidade. Essa possibilidade só se concretiza porque essas gerações estão em convivência diária, transmitindo e trocando valores, ideias e perspectivas, diferindo da concepção de que existiria uma ruptura entre

     Neste trabalho, foi possível perceber que a noção de mundo das adolescentes desenvolveu-se a partir de uma tensão entre o “olhar original” que lançam ao entorno, ou melhor, a ressignificação de enunciados que pertencem a múltiplas formações discursivas das gerações que as precederam (pais, avós, bisavós) e a reprodução dos clichês interdiscursivos que garantem a segurança ontológica de suas unidades familiares. Por outro lado, ainda que não se deem conta, as gerações mais velhas incorporam representações que são veiculadas pelas mais novas, ressignificando processos que antes eram sacralizados, como no exemplo do lugar da mulher dentro das configurações familiares e no mercado de trabalho.

 

Referências

 

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BRASIL. Ministério da Educação; Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Resolução nº 2, de 30 de janeiro 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 jan. 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2016.

 

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⁴ Dados obtidos no Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em: . Acesso em: 06 ago. 2016.

⁵ Estabeleceu-se como referência a faixa etária proposta pela Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, em que jovens são as pessoas que se encontram entre 15 e 29 anos.

⁶ A partir da década de 90 do século XX, diversos municípios do Norte e Noroeste fluminense passaram a receber uma compensação financeira pela exploração do petróleo em seu território, a ser destinada para saúde, educação e outros serviços. Esse período está sendo aqui denominado genericamente de “Era dos